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Bol. Mus. Para. Emílio Goeldi. Cienc. Hum., Belém, v. 17, n. 3, e20210034, 2022

TRANSCRIÇÃO COM TRADUÇÃO JUSTALINEAR ANOTADA

Pa’i Tupana é || O Senhor Deus, [ele] próprio,

xe paperi[1] || minha cartinha

t’ogûerosykatu || que bem faça chegar consigo

nde marane’yma supé, || para tua conservação,

xe rybyri gûy, || ó meu irmãozinho[2]

Pero Potĩ gûy. || Pedro Poti[3].

Ebokûé bé || Também essa

xe paperi || minha cartinha

îamondó endébe. || enviamos[4] a ti.

Ma’e tekópe || De que fatos

ereîmoasy? || te ressentes?

Îaîemonhãmbyterype[5]. || Fizemo-nos pela metade (dividimo-nos).

Ma’epe || De que

ereîmoasy? || te ressentes?

Eîor esema. || Vem, saindo.

Akûéme bé || Desde há tempos

aîkó xe kane’õramo[6] || estou-me cansando

nde resé. || de ti.

Nde ryke’yra bé, || Teu primo (ou irmão) mais velho[7] também,

Capitão-Mor abé, || o Capitão-Mor[8] também,

memẽ nde rybyri, || e, mais ainda, teu irmãozinho,

Saligento[9]-Mor abé. || o Sargento-Mor, também.

Esemĩ[10], || Sai, não mais,

kó xe papera || esta minha carta

repîaka rupibé. || tão logo vires.

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  1. Aqui, temos o diminutivo de papera, ‘carta’, palavra que aparece muitas vezes no conjunto das missivas dos Camarões aqui traduzidas. Esta é, de fato, uma pequena carta, a menor das que se encontram na Holanda. O sufixo de diminutivo em tupi antigo é -‘ĩ ou -‘i. A oclusiva glotal desaparece quando o sufixo se pospõe a um tema terminado em consoante: paper‘i > paperi.
  2. Ver-se-á adiante que Diogo da Costa era irmão legítimo de Pedro Poti. Ver a nota 178.
  3. No texto em tupi, a interjeição gûy, ‘ó’, está repetida. Isso porque não era da índole do tupi antigo usar um nome próprio junto com um designativo de parentesco no vocativo.
  4. Îamondó endébe. – ‘Enviamos a ti.’ – Usou-se aqui o morfema inclusivo îa-. Ora, Pedro Poti não estava, logicamente, incluído entre os que haviam enviado tal carta. Vê-se, assim, o enfraquecimento da diferença entre o ‘nós’ inclusivo e o exclusivo no tupi de meados do século XVII.
  5. Pytera – ‘meio’, ‘metade’, ‘centro’.
  6. Temos aqui um uso anômalo daquilo que corresponde à perífrase ‘estar’ + ‘gerúndio’ em português: ‘estou-me cansando’. Em tupi quinhentista, não se constata o uso de construções semelhantes. O que ficava em gerúndio, em tal perífrase, era o verbo ‘estar’. Dir-se-ia, neste caso, então: Xe kane’õ gûitekóbo... – literalmente, ‘eu me canso, estando...’.
  7. Ver a nota 136.
  8. Ou seja, Felipe Camarão, chefe dos índios aliados aos portugueses naquela guerra.
  9. Saligento – Encontros consonantais não eram da índole do tupi antigo. Assim, formou-se uma sílaba com a vogal i.
  10. O sufixo -ĩ também expressa o aspecto lusivo em tupi antigo, quando se faz algo sem se pensar muito no assunto: ‘falei por falar’; ‘escrevi por escrever’ etc. É bem traduzido pela expressão castelhana ‘no más’.